segunda-feira, 7 de outubro de 2013

CASO DA FAVELA NAVAL, Diadema/SP (1997) - 24ª edição


A DESCOBERTA

Trinta e um de março de 1997. O Jornal Nacional, programa de reportagem da Rede Globo, exibiram imagens que denunciavam a violação de direitos humanos praticada por policiais militares na Favela Naval, em Diadema, São Paulo. As cenas de extrema crueldade revelavam policiais militares extorquindo dinheiro, humilhando, espancando e executando pessoas, no que, oficialmente, seria uma operação de combate ao tráfico de drogas.

O repórter responsável pela matéria, Marcelo Rezende, recebeu a denúncia em um bar, através de imagens que foram gravadas no local dos fatos por um cinegrafista amador nos dias 3, 5 e 7 de março de 1997 e, pelo conteúdo chocante, levou cerca de 5 dias confirmando a veracidade daquela informação. Montou uma equipe com 13 profissionais, que o ajudaram nas investigações, localizaram Gerson Capucci, que dirigia o carro no qual foi assassinado o mecânico Mário José Josino, que estava de férias e tinha ido visitar um amigo. Também foram localizadas várias outras testemunhas das violências policiais, como o rapaz que levou o tiro atrás do muro, Sílvio Calixto, que sobreviveu. Conseguiram localizá-lo e o convenceram a dar o seu testemunho. A equipe de reportagem descobriu que, nos meses que antecederam o episódio, dezenas de denúncias haviam sido encaminhadas às autoridades, QUE NÃO TOMARAM QUALQUER PROVIDÊNCIA.

Já na primeira cena, os PMs param os carros e agridem com violência os ocupantes, que não oferecem qualquer resistência. O motorista de um dos automóveis é esbofeteado e levado para trás de uma parede por um dos policiais. Os outros conversam tranquilamente enquanto se ouvem os gritos de súplica do rapaz que é espancado. O cinegrafista consegue pegar parte da cena em que o policial espancador chama o parceiro e, segundos depois, dispara um tiro. Os dois PMs então se afastam. Um deles guarda a arma e ri.

As imagens também mostram que o pelotão, de volta ao mesmo local dois dias depois, passa a cobrar pedágio para liberar as pessoas paradas no bloqueio. Não tendo como incriminar o dono de um Fusca, um soldado se vinga furando os pneus do carro. Em outra cena, depois de muitas agressões, um policial aparece assassinando um passageiro dentro de um carro.

No dia seguinte à denúncia da violência da PM paulista, o repórter Ernesto Paglia foi até a Favela Naval e mostrou os moradores assustados. O repórter identificou seis dos dez policiais do 24° Batalhão da Polícia Militar envolvidos na barbárie: o sargento Reginaldo José dos Santos, o cabo João Batista de Queiroz e os soldados Nelson Soares da Silva Júnior, Paulo Rogério Garcia Barreto, Rogério Neri Bonfim e Otávio Lourenço Gambra, conhecido como “Rambo”. Ainda no dia 2 de abril os repórteres da Globo identificaram o tenente Wilson Góis Júnior, que estava na operação em Diadema mas que, até aquele momento, sequer tinha sido citado nas investigações. Localizaram também Ricardo Luis Buzeto, que estava foragido. Numa entrevista exclusiva ao repórter Carlos Tramontina, o cabo afirmou não ter participado das agressões. Disse que tinha apenas observado.

A Assembléia Legislativa de São Paulo anunciou a criação de uma CPI para apurar o caso e, em 3 de abril, foi aprovado pelo Congresso o projeto de lei que transformava a tortura em crime com pena de até 21 anos de prisão (Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997). Também no dia 3, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou a proposta de emenda constitucional que federalizava os crimes contra os direitos humanos. Em setembro daquele ano, o repórter Marcelo Rezende recebeu o Prêmio Líbero Badaró de jornalismo.

O próprio presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, por meio do seu porta-voz, tornou pública sua revolta. A Assembléia Legislativa de São Paulo logo anunciou a criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar o caso, e o governador de São Paulo, Mário Covas, assinou a exoneração dos oficiais da PM responsáveis pela região. Os policiais envolvidos no episódio foram presos.



















PERSONAGENS

Segundo informações, Otávio Lourenço Gambra era o tipo de policial que uma comunidade gostaria que patrulhasse suas ruas: pai dedicado de duas meninas menores na época, frequentava cultos evangélicos quando podia, ex-carteiro com o 2º grau completo. Um homem corajoso e ousado que, certa vez, salvou uma criança de 9 dias ao tirá-la das mãos do pai ensandecido que ameaçava estrangulá-la. Aumentava o salário que ganhava lotado na 2ª Cia. do 24º Batalhão fazendo “bicos” como segurança de postos de gasolina, borracharias e açougues.

Apesar disso, nunca se interessou em prestar concurso para cabo e depois para sargento... ganhava como policial o que seria hoje equivalente a R$ 400 (quatrocentos reais). O dono de um dos açougues onde ele trabalhava o descreve como um homem simpático, educado, alegre, que nunca pediu carne de graça, nem sequer um presunto... não acreditou quando viu Gambra nas imagens fazendo o que ele intitulou de “barbaridades”...

Em 12 anos de carreira recebeu 39 elogios por ocorrências bem-sucedidas, como apreensão de carro roubado e flagrantes de assalto. Seu último elogio ocorreu em 18 de março de 1996 onde, segundo o relatório “demonstrou lealdade, trabalhou com afinco, atendeu aos anseios da comunidade em bem lhe servir, inclusive com suas horas de folga e abdicação do seio de sua família”. Dessa forma, tinha o apreço e respeito de seus chefes; segundo o coronel Pedro Pereira Matheus, seu ex-comandante (afastado do cargo no dia 02 de abril de 1997), todo batalhão tem soldados problemas, mas Gambra nunca esteve entre eles.

Na favela Naval, Gambra era conhecido como “Rambo”, um fortão que batia em gente indefesa e se aproveitava da farda para torturar, extorquir, roubar, uma personalidade totalmente diferente do que sua ficha representava. Era o personagem principal das cenas de tortura e assassinato que foram ao ar, onde ele e mais 9 policiais militares foram flagrados aterrorizando moradores.

Gambra aparece descendo o cassetete sobre as costas do assistente de departamento pessoal, Jefferson Sanches Caputi e, mais tarde, na mesma noite, matou o conferente Mário José Josino. Na gravação, Gambra é visto dando dois tiros displicentes, como quem dispara para uma lata de lixo e nem quer saber o que aconteceu depois. No entanto, sua “ficha de tiro” era medíocre: um teste de 1987, em 18 disparos de 38 acertou apenas 5 no alvo; posteriormente, em outro teste, de 22 tiros disparados com uma espingarda, acertou 7.

Mas, na favela Naval, não era conhecido apenas pela agressividade, mas também pela prática de crimes menores. Segundo alguns moradores, “ele chegava muitas vezes sozinho, fora de serviço, encostava num poste de braços cruzados e ficava sacando quem subia e quem descia (…) Abordava qualquer um, tomava dinheiro, relógio, o que o cara tivesse”. De acordo com os moradores, Gambra mandava e os demais obedeciam, embora sua patente fosse mais baixa que de alguns dos demais policiais. Outra testemunha diz já ter visto Gambra investir contra um idoso para atacá-lo com coronhadas de revólver, e um adolescente diz que Gambra apagou um cigarro em sua cabeça.

Para os padrões da PM, a ficha de Gambra tinha infrações leves: em 1988 envolveu-se em um acidente de trânsito por negligência e foi suspenso; em 1989, foi detido por chegar 25 minutos atrasado à companhia; em 1994, passou por uma lombada em alta velocidade e, em outra ocasião no mesmo ano, foi advertido por estar com os cabelos crescidos acima do padrão. Nada que se compare à ficha de quatro dos componentes do que ficou conhecido como o “bando da madrugada”.

Um soldado foi acusado de ato libidinoso por forçar um menino à prática de ato sexual, resistência seguida de morte e resistência seguida de lesão corporal. Um outro policial respondia por 2 homicídio e 3 resistências seguidas de morte.

O soldado Rogério Neri Bonfim, com físico de halterofilista, mostra seu talento para tapas e murros; o soldado Nelson Soares da Silva Júnior bate nos pés do motorista Jefferson Caputi com o cassetete, enquanto Gambra faz o mesmo com um porrete nas costas o rapaz. O soldado Maurício Gomes Louzada também o agride. O soldado Júnior também aparece espancando uma vítima em um beco; o cabo João Batista de Queiroz assiste a tudo. O sargento Reginaldo José dos Santos fura o pneu de um Fusca branco.

Os protagonistas da situação eram (patentes na época):
→ soldado Otávio Lourenço Gambra, o “Rambo”;
→ sargento Reginaldo José dos Santos;
→ soldado Rogério Neri Bonfim;
→ soldado Paulo Rogério Garcia Barreto (condenado em 1998 à 4 anos e 7 meses de detenção em regime semiaberto – foi libertado após o julgamento);
→ cabo Ricardo Luiz Buzeto;
→ soldado Demontier Carolino de Figueiredo;
→ soldado Nélson Soares da Silva Júnior;
→ soldado Maurício Gomes Louzada (condenado à 27 anos de prisão);
→ soldado Adriano Lima de Oliveira (apenas punido administrativamente);
→ cabo João Batista de Queiroz (condenado em 1998 à 4 anos e 2 meses de detenção em regime semiaberto – foi libertado após o julgamento).

Truculentos na favela Naval, policiais tremeram ao depor na delegacia de Diadema: algemados e acuados pelos gritos da população que aguardava do lado de fora, 3 deles choraram, 2 se negaram a falar e 7 chamaram a sessão de pancadaria de “operação de rotina”.


RESULTADO

No dia 11 de maio de 1999, a 3ª Câmara Criminal do TJSP ANULOU a primeira condenação de Otávio às penas de 59 anos e 6 meses de prisão, por homicídio qualificado, 3 tentativas de morte qualificadas, e ainda REDUZIRAM a pena da condenação pelo abuso de autoridade para 1 ano e 6 meses a pena (era de 5 anos e 6 meses). Mesmo assim, teve que aguardar o segundo julgamento na prisão. Para os desembargadores, os jurados decidiram contra as evidências dos autos.

Em 15 de maio de 1999 saiu a decisão de seu segundo julgamento: 47 anos e 3 meses por 2 tentativas de homicídio contra Jefferson Caputi e o músico Silvio Calixto, além de 1 ano de detenção por crime de perigo contra a vida de Antonio Carlos Dias. Em 24 de abril de 2001, mais uma vez o TJSP REDUZIU essa pena para 15 anos e 2 meses de prisão.

Otávio Lourenço Gambra conseguiu junto ao STF a progressão de regime para o SEMIABERTO, em agosto de 2005 (HC n. 86.541/SP – deferido por unanimidade), decisão antes concedida pelo STJ, em 2004 (HC n. 38.206/SP).

Hoje, nenhum dos envolvidos está preso, no entanto, sofreram inúmeras sanções. Três foram demitidos e 6 foram expulsos – segundo a Corregedoria, a expulsão difere da prisão por ter um caráter desonroso para o policial. Essas condenações derivaram de lesões corporais sofridas pelas vítimas.

Dois outros envolvidos foram punidos à época pela polícia militar e hoje continua na corporação: o primeiro tenente bombeiro da corporação, Wilson Góes Júnior que, segundo a PM, os policiais aguardavam ele sair para a ronda para que pudessem atuar de forma inapropriada e não tinha qualquer participação nas ações, mas foi punido com prisão administrativa de 15 dias do mesmo jeito; e o soldado Adriano Lima de Oliveira, também punido administrativamente, e continua na instituição – estava em estágio probatório na época.

Os outros oito policiais foram julgados por abuso de autoridade, cujas penas variam entre 10 dias e 6 meses de prisão, mais a perda do cargo na PM. Só quem respondeu por homicídio foi Gambra.

Em outubro de 2000, houve uma sentença em 1ª instância que concedeu indenização por danos morais de R$ 50mil para cada um dos irmãos e R$ 150mil para a mãe de Mário José Josino, assassinado por Gambra no dia 7 de março de 1997, na Favela Naval.

Entrevista concedida ao repórter Marcelo Rezende

Fonte: Globo Memória
          Arquivo Veja Digital
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          UOL – Folha de São Paulo
          JC Online


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